
Seu Pôncio já mora há alguns anos na casa de repouso em Viena, no sul da França. A casa é um tipo de asilo para altos funcionários que, após muitos anos de serviço ao imperador, não batem bem da cabeça. Foi levado para a casa por solicitação de sua esposa, por apresentar delírios, conversas solitárias, manias e por estar “vendo coisas”. Passado o tempo de adaptação na casa, seu Pôncio iniciou uma rotina semanal sistemática, repetia tarefas em cada dia da semana.
No sábado, passeia pelo jardim, admira o caminho de pedras cinza, sente o cheiro das flores e conversa com elas. Adora a conversa com os girassóis sobre o valor da luz do sol e, por vezes, os acompanha no movimento da direção do sol. Conversa com os crisântemos sobre a vida das abelhas. Com as adoráveis rosas, mantém conversas sentimentais, quase confissões. Descobriu que as rosas não se acham bonitas e reclamavam dos próprios espinhos.
No domingo seu Pôncio faz uma espécie de terapia para as mãos. Precisa aprender a sujar as mãos sem tremer. É parte do treinamento para deixar as manias e traumas. No começo foi difícil, hoje já consegue sujar as mãos em barro, lama e terra preta. Isso também o ajudou a ter uma boa relação com as flores. Apenas um cuidado: não pode sujar as mãos com nada que lembre sangue ou a cor vermelha, senão a tremedeira vem mais forte e seu Pôncio é acometido por pensamentos suicidas. Inexplicável.
Na segunda-feira, novas conversas no jardim, desta vez com as árvores. As árvores são muito radicais, tem posições fixas em muitas coisas, enraizadas em tradicionalismo. Só a doçura dos seus frutos as salva da rabugice. Algumas delas tem complexo de grandeza, orgulhosas, algumas são casca-grossa e, às vezes, as conversas não duram muito. Seu Pôncio não gosta de nada nem ninguém que se achasse maior do que ele.
Na terça-feira, entabula conversas com um passarinho neurótico na janela. O passarinho repete toda semana a dura vida que tivera numa gaiola em Roma. O trauma deixou sequelas no pequeno pássaro. As conversas entre os dois variam entre o mau-humor das enfermeiras da casa até a busca do sentido da vida, passando por elucubrações existenciais da vida engaiolada dos pássaros neuróticos. A conversa é filosófica e densa, mas terapêutica, acalmava os nervos do seu Pôncio.
Na quarta-feira, frequenta os banhos termais por longas horas. Adora ficar vendo o vapor d’água subindo, pois consegue ver na névoa lances da época de ouro quando foi governante. Nesse tempo era obstinado, inflexível e sem misericórdia. Bem diferente do dócil (embora orgulhoso) senhor idoso de hoje.
Na quinta-feira, recebe a visita da esposa, mulher sábia que lhe traz alento e conselhos. “Porque não ouvi você, minha querida?” – lamentava sempre que a via e repetia – “Porque não ouvi você?”. A esposa ouvia os lamúrios, dava conselhos e terminava a visita com uma listinha de “não faça..”, “não te envolvas com…”, “pare de…” e “ontem tive um sonho que…”.
A sexta-feira é o pior dia da semana (talvez algum trauma no passado). A sexta é sombria, carregada de nuvens negras, quase fúnebre. Seu Pôncio tremia nas sextas-feiras, especialmente as mãos. Memórias fantasmagóricas o assombram nesse dia, o qual ele considerava um algoz, um aguilhão na alma, um espinho na consciência. Nas sextas, aguarda medrosamente a porta abrir. Ele não gostava, mas precisava fazer como parte da sua terapia de cura.
“Seu Pôncio Pilatos, hora de lavar as mãos!” – grita a enfermeira, entrando no quarto.
Seu Pôncio, num turbilhão de memórias afloradas, vai até a bacia colocada em cima da mesa e começa a lavar as mãos freneticamente. Recita de forma repetida: “estou inocente do sangue desse justo, estou inocente do sangue desse justo, estou inocente do…”
Os pensamentos suicidas começavam a voltar…
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Massa!
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